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Uma trilha de quase cem anos 1

 

Lendo pautas no escuro

Desde o final do século XIX, quando as plateias se aglomeravam para acompanhar as projeções da mais nova maravilha tecnológica disponível ao lazer, já havia um músico itinerante que ganhava a vida acompanhando os shows projetados na mágica, mítica e sedutora salinha escura. A alquimia entre música e imagens se processava então por meios artesanais. Se o cinema nunca foi mudo, tampouco foi surdo.

Fossem imagens corriqueiras do dia a dia ou mesmo algum delírio fantasioso de George Meliès, a necessidade de suporte sonoro ao que se via na tela era inquestionável. A música era a interação, o passe de mágica final para o envolvimento definitivo da plateia com a encenação projetada. Era a voz das imagens em movimento dando-lhes consistência, encadeamento, significado e presença. Assim, a maioria das sessões de cinema eram acompanhadas por um pianista – e habilidoso improvisador – que sabia do que cada sequência precisava musicalmente: polkas e ragtimes acelerados para cenas de ação e valsas para cenas românticas. Variações no limitado repertório ficavam a critério do senso improvisador de cada profissional.

Dependendo do caixa disponível — e também da generosidade dos gerentes — o pianista ganhava companheiros na sessão, formando trios ou mesmo quartetos para maior expressividade. O genial George Meliès — entre incontáveis novidades — chegou a colocar um cantor detrás da tela para que ele dublasse sua própria imagem projetada.

Em casos raros até mesmo uma orquestra era empregada para maior preenchimento do espaço acústico e para o devido suporte dramático a projetos mais ambiciosos. Houve casos históricos em que compositores da música clássica chegaram a escrever toda uma partitura original de acompanhamento sinfônico a um filme. O clássico expressionista Nosferatu (Nosferatu, 1922) de F. W. Murnau é um dos exemplos mais famosos. Não era por acaso que Nosferatu tinha como subtítulo Uma Sinfonia de Horror, tal a importância da música como reforço ao ritmo visual, narrativo e desenvolvimento dramático do filme. Seu compositor, o alemão Hans Erdman, foi um bravo visionário que deu bastante importância ao nascente mercado das trilhas sonoras, chegando até a editar um jornal independente dedicado ao gênero e seu valor como nova forma de expressão musical. Como extensão ao filme exibido, as plateias da época tiveram o privilégio de presenciar a performance ao vivo da orquestra.

Outros casos de pioneirismo foram os de Camille Saint Saëns que já em 1907 criara a música original para O Assassinato do Duque de Guise, e também Arthur Honneger que compôs para o diretor Abel Gance as música de La Roue (1922) e Napoleon (1926). Como em Nosferatu, as exibições eram acompanhadas de apresentações ao vivo com a orquestra em sincronia à projeção.

Merecem citação, casos posteriores de compositores de música clássica que fizeram trilhas para filmes, como Sergei Prokofiev e as composições para Alexander Nevsky (Alexandre Nevsky, 1938) e Ivan, the Terrible (Ivan, o Terrível, 1945), e também Arthur Bliss com a música de Things To Come (Daqui a Cem Anos, 1936), Benjamin Britten com Coalface (1935) e Night Mail (1936), Arthur Honneger com Les Miserables (1934), Jacques Ibert com Golgotha (1935) e Georges Auric com Le Sang D’um Poete (1930).

 

O som de cara pintada

Uma grande revolução tecnológica ocorreria em 1926 como o filme Don Juan que trazia sua trilha musical registrada na mesma mídia das imagens (a película). No ano seguinte The Jazz Singer (O Cantor de Jazz), faria o mesmo, mas desta vez com música, diálogos e efeitos gravados e em sincronia à projeção, dando ao espetáculo cinematográfico sua devida dimensão operística, maravilhando plateias mundo afora. Quem não gostou nada da novidade foram certamente os pianistas de sessões que acabaram esquecidos como peças de um romântico folclore. Casos raros de adaptação à nova era foram, por exemplo, o do pianista francês Alain Romans que trabalhou como acompanhante de projeções nos anos 20 e que, mais adiante, faria alguns dos famosos temas para os filmes do comediante francês Jacques Tati. Também começou como pianista em sessões silenciosas o compositor Alfred Newman, mas tarde um dos mais importantes compositores americanos da era sonora.

O cinema sonoro, que a princípio pareceu uma curiosidade passageira, tomou forma definitiva e já em 1929 era uma realidade irreversível. Com a revolução do som, os cinemas dispensaram as orquestras e certamente ampliaram a plateia. Al Jonson, com a cara pintada de preto, entoava “Mamy” nos alto falantes das salas de projeção, que tiveram que passar por reformas para se adaptar às novas exigências acústicas. O cinema passava da curiosidade corriqueira a um ambiente onírico, alternativo à realidade. Um ambiente para se sonhar acordado, para devaneios e estímulos sensoriais. Nascia então uma nova e irresistível mitologia, potencializada também pela força encantatória da música.

A natural demanda por músicos, arranjadores e compositores, foi imediata com o surgimento do cinema sonoro. Ao contrário do que supunham muitos proprietários de salas de exibição, achando que o som “não deixava os espectadores dormirem nas poltronas”, o público se habituou rapidamente à novidade e saudou entusiasticamente o nascimento de um novo gênero: o musical. Grandes compositores já consagrados na Broadway como George Gershwin, Gerome Kern e Irving Berlin foram atraídos ao cinema, onde adaptaram seu já clássico repertório e seguiram carreira, deixando uma incontável quantidade de standarts da música popular americana. Busby Berkeley alucinava as plateias com seus balés caleidoscópicos até então impossíveis de serem vistos em palcos, na forma como foram vistos nas telas.

O genial Charles Chaplin, a princípio, rejeitou a novidade tecnológica por supor que o som nos filmes acabaria com a essência da arte cênica: a atenção à pantomima do ator, respeitosamente coadjuvada pelo silêncio. Ironicamente, e graças ao seu generoso talento, Chaplin criou temas musicais belíssimos e imortais como seus filmes. Cabe aqui voltar a citar o comediante Jacques Tati que genialmente adaptou a arte da pantomima muda ao cinema sonoro (nos anos 50) através de seu personagem Monsieur Hulot, eternamente desorientado em um mundo caótico e barulhento. Obviamente a visão irônica de Tati se referia à mecanizada sociedade moderna e não às memoráveis trilhas sonoras que acompanharam seus filmes, sendo inclusive elas, vítimas da eternamente ruidosa desorganização comportamental do homem.

 

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