Uma trilha de quase cem anos 2
Pavimentação
Enquanto os musicais se popularizavam, nos anos 30, Hollywood buscava no repertório da música clássica, temas mais amplamente conhecidos para seus filmes. Temas esses, que já estavam prontos e melhor de tudo, davam certo toque erudito a seus produtos. O filme The Son of the Sheik (O Filho do Xeque, 1926) estrelado por Rodolfo Valentino, era normalmente acompanhado de trechos da 5ª Sinfonia de Tchaikovsky. Também de Tchaikovsky, O Lago dos Cisnes foi utilizado em Dracula (1931) de Tod Browning.
A utilização de clássicos adaptados durou até o impacto causado por King Kong (King Kong, 1933) acompanhado da música vibrante e grandiosa de Max Steiner. Com essa trilha sonora e com a atmosfera francamente fantasiosa da película criou-se um novo conceito de espetáculo audiovisual, onde a música tinha um papel, se não predominante, certamente importantíssimo no suporte aos fantásticos acontecimentos vistos na tela. Ironicamente, serviu a dar “veracidade” ao inverossímil. Mais do que criar envolvimento sonoro, com King Kong a música passou a pontuar a ação com arranjos frenéticos e uma instrumentação que não precisou seguir tradições ou regras muito rigidamente. O impacto da música sobre as plateias foi imenso. O pianista Oscar Levant chegou a comentar ironicamente que a obra poderia ser anunciada como um concerto de Max Steiner acompanhado de imagens. Com ensurdecedores solos de tímpanos, solene ataque de gongos além da expressão dramática dos grupos de cordas, a música para King Kong pavimentou a estrada que seria seguida por gerações de compositores e teve influência tanto duradoura quanto irreversível. Não é sem motivo que até mesmo trechos de Lost World, de John Williams, composto mais de 60 anos depois, lembram momentos de King Kong. É evidente que Steven Spielberg – um declarado colecionador de trilhas sonoras – encomendou a Williams a música de Lost World tendo King Kong em mente, e isso só reitera o valor da música de Max Steiner e outros talentos do período, cujas fórmulas sonoras continuaram eficientes depois de tantas décadas.
Não bastasse ter escrito o primeiro capítulo da história das trilhas sonoras com a música do gigantesco primata, Steiner foi ainda mais longe com a trilha de Gone With the Wind (E o Vento Levou, 1939) que cativou a imaginação das plateias com seu tema – talvez o mais famoso de toda a história das trilhas – que representou a dimensão “bigger than life” do cinema de forma irretocável.
Em uma linha de produção marcada pela velocidade industrial, não era de se estranhar que os compositores recorressem com frequência à utilização de arranjos-fórmulas que eram empregados repetidamente. Mas isso não poderia ser visto como limitação criativa ou preguiça dos compositores. A verdade era que, para eles, o lugar de existência de uma trilha sonora era apenas a sala de exibição, e o tempo de vida de uma partitura era o tempo de projeção do filme. Na época, ninguém pensou em ouvir trilhas separadas da película. Nunca se imaginou um “mercado de trilhas sonoras” nem em mídia radiofônica como meio de difusão ou no mercado de discos como registro desses trabalhos, salvo raríssimas exceções editadas nos pesadões 78 RPM. O registro em larga escala só ocorreria com o desenvolvimento da indústria fonográfica no pós-guerra.
Welcome to Hollywood
Com as dificuldades econômicas e políticas vividas na Europa com a Primeira Guerra Mundial e, posteriormente, com a Segunda, muitos profissionais das artes mudaram-se para o mercado americano, então em convidativo crescimento. Diretores, atores, roteiristas, fotógrafos e compositores se instalaram em solo americano para fugir das dificuldades sócio-políticas, ou simplesmente para tentar um mercado alternativo de trabalho. Com o êxodo desses profissionais, toda uma bagagem artística de tradição, teoria e experiência, serviram ao enriquecimento do cinema americano. Na área musical muitos compositores atuantes na área da música clássica e com carreiras já solidificadas em salas de concerto, contribuíram para o aprimoramento da linguagem musical empregada nas trilhas sonoras durante aos anos 30. O trabalho de fundadores como o austríaco Max Steiner, o alemão Franz Waxman, ou o russo Dimitri Tiomkin, foi essencial ao estabelecer formas musicais básicas e dramaticamente funcionais de acompanhamento a uma película.
No início dos anos 40, as trilhas já apresentavam sinais de refinamento “autoral”. A música de Bernard Herrmann para o filme Citizen Kane (Cidadão Kane, 1940), sugestiva e pesadamente dramática, foi uma das propulsoras de uma nova abordagem assim como a música de Spellbound (Quando Fala o Coração, 1945) do húngaro Miklós Rozsa, que sugeria desequilíbrio psicológico através de modulações eletrônicas. A música de cinema começava então a ser reconhecida e respeitada como arte independente do filme para a qual foi feita, seja isso por sua qualidade sinfônica ou pelo reconhecimento popular de algum tema isolado como o citado E o Vento Levou ou o de The Third Man (O Terceiro Homem, 1949) do compositor austríaco Anton Karas, ou o Concerto de Varsóvia do compositor inglês Richard Addinsel, para o filme Suicide Squadron (Esquadrão Suicida, 1941).
Com o fim da Segunda Guerra o mercado europeu voltou a produzir em maior escala e a natural bagagem cultural europeia viu-se refletida na riqueza temática e musical dos filmes franceses, ingleses e principalmente italianos que, no movimento neo-realista viu o florescimento e a prolífica produção de grandes compositores como Carlo Rusticheli, Goffredo Petrassi, Armando Trovaioli, Nino Rota e Mario Nascimbene.
