Uma trilha de quase cem anos 3
O tempero do jazz
Quando Alex North colocou na pauta a música para A Streetcar Named Desire (Uma Rua Chamada Pecado, 1951), a pedido do diretor Elia Kazan, não imaginava que seria responsável por uma revolução, além de muita polêmica. Inserindo tempos rítmicos e fraseados jazzísticos e carregada de sensualidade, a trilha foi recebida com reservas por alas mais conservadoras. A “pureza artística” das trilhas sonoras em sua descendência da música clássica estava sendo ameaçada por valores duvidosos e apelos populares, isso para não falar na “ostensiva vulgaridade” representada pela música sensual e a ginga rítmica natural ao jazz e ao blues. Na época, o jazz ainda recendia de sua aura “maldita” para ser respeitado como trilha sonora — ou era muito popular (depois do swing do pós-guerra) para ser levado à sério como partitura para efeito dramático. Mas a história segue seu curso, e a trilha de Alex North é hoje reverenciada como divisora de águas por inaugurar a utilização do jazz no cinema. A ela seguiram-se outros trabalhos históricos baseados em linguagem jazzística como The Man With the Golden Arm (O Homem do Braço de Ouro, 1956) de Elmer Bernstein, Touch of Evil (A Marca da Maldade, 1958) de Henry Mancini e I Want To Live (Quero Viver, 1958) de Johnny Mandel. A entrada do novo gênero na música de cinema significou a ampliação de linguagem e instrumentação e a possibilidade de misturas sonoras menos habituais. O consequente enriquecimento musical foi de grande benefício tanto para os filmes quanto para os compositores. As duas linguagens (clássica e jazz) iriam se encontrar mais adiante no trabalho de Quincy Jones.
Simultaneamente, os anos 50 também testemunharam importantes mudanças na área tecnológica com a chegada da estereofonia, dos discos long-play (com uma média de vinte minutos a mais que os 78 RPM) e técnicas de gravação mais apuradas. Surgiram então os primeiros best sellers do mercado de trilhas sonoras com os LPs contendo as músicas de Vertigo (Um Corpo Que Cai, 1958), The Robe (O Manto Sagrado, 1953), Around the World in 80 Days (A Volta ao Mundo em 80 Dias, 1956) e Gone With the Wind. Temas de sucesso popular como o de Rififi (Rififi, 1954), Moonglow, do filme Pic-Nic (Férias de Amor, 1955), e An Affair To Remember, do filme do mesmo nome (Tarde Demais Para Esquecer, 1957) anteciparam a febre de trilhas sonoras associadas a canções populares na década de 60.
Na Europa, destacou-se a crescente produção italiana, cuja música sempre procurou caminhos de inovação sem hesitar em acrescentar o que fosse preciso para o enriquecimento sonoro de uma película. O compositor Mario Nascimbene faria história na exótica utilização do som de uma máquina de escrever na trilha musical de Rome, Ore 11 (1951) que se tornaria popular como Concert for Four Typewriters and Orchestra. Outros compositores, como Piero Umiliani e Armando Trovaioli, foram pioneiros em seu mercado, no uso do jazz como suporte sonoro a um filme. Na busca de um comentário mais moderno e popular, incorporou-se até a eletrônica e referências à música pop, com resultados musicais que superaram seus modelos.
Estranhos no ninho
A explosão da música pop nos anos 60 e a descoberta do mercado jovem foram irreversíveis e determinantes para o mercado da música mundial. Nunca se vendeu tantos discos e nunca antes se faturou tanto com merchandising. De Elvis Presley à beatlemania, montou-se um império fonográfico de tal magnitude que parecia capaz de esgotar as reservas o vinil. O fato não poderia ficar alheio aos produtores cinematográficos e a seus compositores. Assim, o mercado cinematográfico naturalmente apostou na venda de discos como forma de faturar um punhado de dólares a mais. Apesar de terem sido criticadas como um retrocesso artístico em comparação ao trabalho sinfônico praticado por tantos anos, as trilhas sonoras de orientação pop tiveram sua importância por revelarem a um público maior, uma produção sempre de pouca oportunidade no mercado.
Percebeu-se esse novo caminho (artístico e financeiro) com o sucesso de trilhas como as de Breakfast at Tiffany’s (Bonequinha de Luxo, 1961) com a imortal canção Moon River de Henry Mancini, ou a trilha de Un Homme et Une Femme (Um Homem e Uma Mulher, 1966) cujo tema principal de Francis Lai, é emblemático da época. Também de Lai, Love Story (1970) é um dos maiores exemplos de tema bem sucedido popularmente, que embalou ouvidos e corações. Foi uma das canções mais executadas (e vendidas) de então.
Deve-se considerar também que o período compreendido nas décadas de 60 e 70 foi riquíssimo na história do cinema como uma época em que se produziu muito e com muita qualidade. A profusão de gêneros explorados pela indústria cinematográfica – em Hollywood e na Europa – era notável: filmes de espionagem, policiais, guerra, faroestes, dramalhões, épicos, documentários populares, ficção científica, filmes de terror, filmes eróticos e um grande etc. que variou de produções classe A, a filmes trash, e proporcionou um amplo espaço/laboratório para compositores exercitarem sua criatividade. Seria até argumentável que talentos como os de Jerry Goldsmith ou Ennio Morricone não tivessem tido uma carreira tão brilhante em outras épocas de meios expressivos mais convencionais.
Em contrapartida, a nova demanda ameaçou o trabalho dos fundadores da escola sinfônica que acabou sendo desprezado como algo ultrapassado e fora de época a ponto de alguns compositores continuarem atividades lecionando música ou mudando-se para a Europa em busca de uma produção mais “artística” e menos “mercadológica” em um caminho inverso ao que fizeram os compositores nos anos 30. A trilha composta por Bernard Herrmann para Torn Courtain (Cortina Rasgada, 1966), por exemplo, chegou a ser rejeitada por Alfred Hitchcock – por pressão de produtores – pondo fim a uma lendária parceria de muitos anos. “O que eles precisam agora é de compositores de canções”, comentou Herrmann, irônica e amargamente, ao deixar Hollywood.
Mais adiante, as trilhas sonoras de Easy Rider (Sem Destino, 1969), Homer (1970) e The Graduate (A Primeira Noite de Um Homem, 1967), que utilizaram canções de grupos de rock já conhecidas do público, inauguraram as coletâneas populares de sucesso garantido nas prateleiras de lojas de discos e fizeram com que muitos compositores tivessem cada vez menos utilidade nas películas para o desenvolvimento de temas e arranjos.
No final da década de 60, vivia-se o auge da contracultura, da contestação, da rejeição ao padrão e os filmes refletiram o período de forma intensa. Nunca o cinema americano fora tão “europeu”. Nunca o mainstream fora tão “alternativo”. Também as trilhas quebraram a tradição, em trabalhos para conjuntos de dimensões reduzidas ou para grupos instrumentais pouco comuns. Inúmeras referências se somaram como a eletrônica, a vanguarda, naturalmente o rock e o jazz, e ainda houve o notável acréscimo da soul music, gênero de forte apelo no início dos anos 70.
Com o romantismo clássico das décadas anteriores praticamente abandonado, as mudanças também foram radicais no campo orquestral: a incorporação da música de vanguarda ouvida em trilhas como Seconds (O Segundo Rosto, 1966) e Planet of the Apes (O Planeta dos Macacos, 1968) ambas de Jerry Goldsmith ou Fantastic Voyage (Viagem Fantástica, 1966) de Leonard Rosenmann, foram importantes ao proporcionar novidades e diversificar as possibilidades de linguagem.
O sucesso do cinema independente e a força contestadora dos novos tempos obrigaram a indústria cinematográfica mundial a uma desesperada renovação na entrada dos anos 70. Realismo, contestação e filmes-denúncia se opunham radicalmente ao exotismo-pop dos anos 60. Praticamente não havia mais tradição e qualquer combinação musical se tornava possível nas trilhas sonoras. Até mesmo o indiano Ravi Shankar teve a chance de compor para um filme americano, mesclando seu idioma tradicional ao jazz na trilha de Charly (Os Dois Mundo de Charly, 1969). Elementos “estranhos no ninho” eram incorporados com a maior naturalidade, como a fusão entre soul music, violinos e eletrônica nos exuberantes instrumentais de Shaft (Shaft, 1971) de Isaac Hayes; assim como as “paisagens cósmico-eletrônicas” de Edward Artemiev para Solaris (Solaris, 1972) ou os madrigais macabros de Ennio Morricone para filmes de terror como Four Flies on the Grey Velvet (Quatro Moscas no Veludo Cinza, 1973). A expressão sobrepujava a tradição. Mesmo que nociva à escola sinfônica a nova tendência marcou um período de grande liberdade criativa para os compositores com resultados nunca ouvidos anteriormente.
