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O outro Morricone

 

“Morricone foi para a música no cinema o que Picasso foi para a pintura ao desmontar, reformular e reagrupar seus elementos constituintes e devolvê-los à cultura que os originou”. John Bender, producer

 

Reconhecido como um dos maiores talentos na composição para filmes em todos os tempos, o compositor italiano Ennio Morricone ainda é estigmatizado pela imagem musical dos spaguetti westerns. Sem duvida foi um trabalho revolucionário e de personalidade. Ainda hoje é influente (basta ver Django Unchained), e o duradouro fôlego criativo do maestro romano foi responsável por outras jóias da escrita para filmes como A Missão, Cinema Paradiso e Os Intocáveis. Todas devidamente reconhecidas, muito bem recebidas nas prateleiras de lojas e tornadas best sellers pelos colecionadores. Mas Morricone, em 50 anos de atividade no cinema fez muito mais do que habitualmente é referido a ele. Sua produção não se limita a Sergio Leone e Giuseppe Tornatore. Tampouco se limita a música sinfônica que ele próprio vem cultivando nas recentes décadas de atividade.

 

Passado o período de consagração nos faroestes, e obviamente não pretendendo ficar retido neles, Morricone encontrou nos filmes de suspense e no cinema político um terreno bastante interessante de possibilidades em criação. Isso ocorreu no início dos anos 70 e filmes como Il Gatto a Nove Code (O Gato de Nove Caudas, 1971) ou La Califfa (A Rebelde, 1970) foram indicadores dessa direção a novas ousadias experimentais. Em La Califfa, drama politico estrelado por Romy Schneider e Ugo Tognazzi a atmosfera fúnebre é destacada nos intensos toques de carrilhão. No referente à beleza melódica – algo também muito valorizado na obra de Morricone – o tema principal, La Califfa (solado por oboé), se destaca como um dos mais belos e líricos jamais feitos pelo compositor. A experimentação instrumental de La Califfa coloca essa trilha como um ponto de intersecção entre as experiências dos faroestes e a produção posterior do compositor. Incorporando todo e qualquer exotismo para maior efeito, Morricone preparou aqui o caminho para sua rica e originalíssima produção na década de 70. 

Experimentações instrumentais também seriam a marca de Teorema (1968) que explora nuances de cordas e vozes. O resultado poderia ser facilmente considerável como “fantasmagórico”, mas o termo é por demais redutor do significado extra que a música alcança em faixas como Frammenti e no tema central Teorema. O compositor descentraliza o conjunto sonoro tal como a presença do visitante (Terence Stamp) desequilibra a família que o recebe e até o que seria uma simples canção pop como Fruscio De Foglie Verdi adquire um tom estranho pela participação em um conjunto musical tão incomum. Devido à exposição econômica no filme é uma trilha que vale muito mais quando ouvida separadamente. 

A experimentação também é a marca de Quando L´Amore é Sensualita (1973, CAM Records) com sua construção beirando o minimalismo. Motivos econômicos para piano, cordas pizzicati e vocais monossilábicos (da-da-da) compõem uma das mais intrigantes trilhas do compositor. O filme é um drama erótico sobre as dificuldades de uma jovem recém-casada (Agostina Belli) em aceitar a consumação nupcial e a música segue apreensiva no cantarolar quase infantilizado de várias faixas. Ritmos mecânicos (quase como metrônomos ou relógios) entram em defasagem (como em Giochi Naif) para efeito de dispersão perceptiva e espacial. É um dos trabalhos mais difíceis e inusitados do compositor, mas também um dos mais interessantes pela ousadia em experimentar. Em meio ao “tic-tac” constante dos ritmos e vozes destacam-se, o belíssimo tema “chopiniano” Canzone Per Donatella em piano solo, a comicidade de Strano Collage de Camera e a balada Soluzione Borghese (em órgão “de pizzaria” e efeitos wah-wah).

Inesperadas combinações sonoras também caracterizam Veruschka (1971), drama estrelado pela famosa modelo que dá nome ao filme. É uma trilha de orientação psicodélica bastante inesperada na carreira do compositor. Aqui novamente a instrumentação pop é predominante, mas a linguagem musical empregada é inclassificável, indo da óbvia referência ao rock (marcação de bateria e efeitos de guitarra), para uma expansão sonora indefinível. 

Revolver (1973) intensa e diversificada tem como maior atrativo o tema Un Amico que foi usada em Inglorious Basterds (Bastardos Inglórios, 2009) para a morte de Shosanna na cabine de projeção do cinema. Esse tema e uma suíte de 12 minutos de blocos rítmicos que não se concluem são o principal material musical da trilha. Curiosidades como o jazz-soul de In Un Bar e o pop-barroco de Quasi Un Vivaldi (quarteto de cordas e ritmo em bateria) acrescentam diversidade e riqueza a uma das trilhas mais dinâmicas de Morricone.

Outro trabalho curioso é Extrasensorial (1982) suspense pouco citado, mas com uma trilha bastante interessante que opta pela introspecção e evita o lugar comum. Ao contrário da trilha, o filme – do especialista em cinema B, Alberto de Martino – é uma tentativa de seguir a fórmula de Brian de Palma (que, por sua vez, seguia Hitchcock). Estrelado por Michael Moriarty, um dos piores e mais divertidos atores jamais vistos, no papel clichê de gêmeos em filme de suspense: um normal, o outro assassino. Moriarty provavelmente foi escalado por sua semelhança com John Lithgow, habitual ator de personagens desequilibrados e famoso pelos thrillers de De Palma. Extrasensorial é uma grande peça tonal com tema principal romântico em ritmo pop. O segundo tema, uma valsa apreensiva (adequadamente chamada Macabre Walzer) é a que abre o filme em um salão de dança. A introspecção romântica de Through His Eyes (em cravo e piano) também é um dos pontos altos da trilha. Os demais temas cumprem sua função com atmosferas de suspense, mas Morricone escapa do clichê com as atmosferas doces e evocativas que soam agradáveis e muito pouco tensas. Um exercício em expectativa. Editado pelo selo Beat Records junto à trilha do faroeste Five Men Army (Exército de Cinco Homens, 1969).

Em resumo: a obra de Morricone parece mesmo ser um infinito local de pesquisas, descobertas e boas surpresas.

 

 

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