Black Power cinema
Em plena fervura dos movimentos sociais dos anos 60, a cultura americana viu o florescimento do cinema black tanto como consequência das mudanças sociais de sua época como descoberta de um público pagante negligenciado. Inicialmente dando destaque a protagonistas negros como Jim Brown em The Split (Quadrilha em Pânico, 1968), Sidney Poitier em In the Heat of the Night (No Calor da Noite, 1967) ou abordando o momento social como em Uptight (Poder Negro, 1967), o gênero passou a ter produções quase que exclusivamente voltadas para audiências negras.
“O que sempre tivemos foi uma fantasia branca sobre o que as audiências negras supostamente gostariam de ver. Esse público nunca teve uma voz” – Melvin Van Peebles
O melhor de tudo (pelo menos para o editor deste site) é que o gênero proporcionou um revigorante impulso a trilhas sonoras que assumiram a referência popular do soul, do blues, e do jazz para suas trilhas musicais. O pioneiro e engajado Uptight de Jules Dassin, que teve trilha entre o soul e o blues do grupo Booker T. and the MGs, foi um dos orientadores a esse novo formato de acompanhamento musical.
Na trajetória até o cinema black, Sidney Poitier foi uma figura importante, mesmo que sempre fizesse o bom moço em dramas como No Way Out (O Ódio é Cego, 1950, estreia do ator), ou A Patch of Blue (Quando Só o Coração Vê, 1965). Até o jovem delinquente que confronta seu professor (Glenn Ford) em Blackboard Jungle (Sementes da Violência, 1955) tinha seu talento musical evidente. Curiosamente Poitier tomaria o lugar do professor em To Sir With Love (Ao Mestre Com Carinho, 1967), praticamente uma refilmagem de Blackboard Jungle, e um dos filmes mais populares do ator. A ascensão de Poitier levou-o automaticamente à nascente do cinema black com o sucesso de In the Heat of the Night (1967).
Quincy Jones viria a ser uma espécie de mentor musical para o gênero devido às trilhas que fez, entre outras, para filmes estrelados por Poitier como The Slenders Thread (Uma Vida Em Suspense, 1965), For Love of Ivy (Um Homem Para Ivy, 1968) ou The Lost Man (Com os Minutos Contados, 1969). O maior destaque seria obviamente de In the Heat of the Night (1967) e suas duas sequências, They Call Me Mr Tibbs (Noite Sem Fim, 1970) e The Organization (1971, este com música de Gil Melle). Virgil Tibbs foi um herói do cinema policial antes mesmo de Harry Callagham.
E o gênero foi descobrindo seu potencial de mercado em produções como Cotton Comes To Harlen (Rififi no Harlem, 1970), simpática, dinâmica e criativa aventura cômica dirigida pelo ator Ossie Davis que teve trilha musical composta por Galt MacDermoth, mais lembrado como o compositor da peça Hair. O drama Across the 110th Street (A Máfia Nunca Perdoa, 1971), produzido e estrelado pelo ator Anthony Quinn, alternou o nascente gênero black com drama mafioso e teve trilha excelente de J. J. Johnson e Bobby Womack. Mas foi mesmo o sucesso de Shaft (1971) dirigido por Gordon Parks que estabeleceu os filmes black power na indústria do cinema. A trilha de Isaac Hayes para Shaft se tornaria um dos pilares fundamentais do gênero inclusive por sua premiação com o Oscar. Na sequência Shaft Big Score (O Grande Golpe de Shaft, 1972) o próprio diretor Gordon Parks assumiria a composição da trilha musical, surpreendendo com um trabalho muito consistente. Filme e trilha dignos da expectativa gerada pelo sucesso do primeiro filme.
Mas nada igualou o independente Sweet Sweetback Baadaass Song (1971), o clássico inclassificável de Melvin Van Peebles. A ovelha negra. O avesso do avesso. Filme manifesto de recursos mínimos, resultado discutível, tecnicamente desastroso, mas um clássico do cinema marginal por assumir anarquicamente o realismo e a denuncia. E por uma trilha sonora composta pelo próprio Van Peebles.
Viriam em seguida ao sucesso de Shaft uma diversidade de produções que oscilaram em qualidade de conteúdo e qualidade de produção. Superfly (1972), direção de Gordon Parks Jr, por exemplo, é bastante simples de recursos e de roteiro, mas tem uma das principais trilhas do gênero, composta por Curtis Mayfield. Trouble Man (1972), também tem roteiro modesto, mas um bom nível estético e a qualidade da trilha de Marvin Gaye que o colocou na história como um dos clássicos de sua época. Cool Breeze (1972) equilibra exemplarmente as bases soul à guitarras de rock. A trilha de Salomon Burke é um dos grandes exemplos de inventividade ao assumir modelos populares para composições mais livres e que talvez só tivessem justificativa como composições para cinema. É possível que em nenhum outro momento de criação um compositor fizesse uma tema soul com solos de trompa (!) como na faixa Fight Back, em Cool Breeze. O ano de 1972 seria o auge do gênero com Slaughter estrelado por Jim Brown e Hammer com Fred Williamson.
No caminho de aceitação pelas bilheterias os filmes foram perdendo o conteúdo social que tinha no início para se concentrar em aventuras fantasiosas, jamesbondianas, assumidamente pop. Cleopatra Jones (1973) é possivelmente o maior exemplo desse caminho e aqui novamente J. J. Johnson marca presença com uma trilha sonora de destaque.
Coffy (1973) fez da atriz Pamela Grier a grande musa negra do cinema Black Power. Depois de estrelar algumas apelações wip (woman in prision) como White Mama, Black Mama (1973) e Big Bird Cage (1972), Pam Grier em Coffy encarna a enfermeira vingadora que se infiltra no mundo das drogas para eliminar os traficantes responsáveis pela morte de sua irmã. A música de Roy Ayers é uma das melhores com seu dinamismo e o toque sofisticado do seu vibrafone. Black Belt Jones (Jones o Faixa Preta, 1973), sucesso com Jim Kelly logo depois de Operação Dragão, teve trilha marcante que reciclou ingredientes básicos da soul music (breaks rítmicos, swing romântico). Composta por Dennys Coffey e Luchi de Jesus, é uma das mais divertidas do gênero. No mesmo ano, The Mack teve trilha muito ativa e presente de Willie Hutch. Willie Dynamite (1974) com produção da dupla Zanuck & Brown foi um dos melhores do gênero enquanto qualidade técnica. Ponto novamente para a boa música de J. J. Johnson. Depois de Quincy Jones e Isaac Hayes, Johnson foi o compositor que mais soube adequar a linguagem soul às necessidades da narrativa cinematográfica.
Com Black Ceasar (1973) e Slaughter Big Rip-off (1973), o Soul Brother N.1, James Brown, deixou duas interessantes alternativas instrumentais em sua carreira de vocalista modelo da soul music. Em Hell Up in Harlem (1974, sequencia de Black Ceasar, musicado por Fred Perren e Edwin Starr) a música chega a ser usada para encadear sequências e suprimir diálogos e sonoplastia em um exemplar processo classe B de sonorização.
Isaac Hayes além de compor as trilhas, também estrelou as aventuras Three Tough Guys (O Preço da Ousadia, 1973) e Truck Turner (1974). O primeiro foi uma simpática aventura dirigida pelo italiano Duccio Tessari (dos faroestes de Giuliano Gemma) e co-estrelada pelo eterno durão Lino Ventura. Por sua vez, Truck Turner com sua qualidade estética, narrativa e por sua excelente trilha sonora é uma espécie de fim de ciclo de ouro no cinema black.
No caminho, viriam as francas apelações blaxploitation (black + exploitation) que caracterizaram o rumo ao esgotamento como a fusão com filmes de terror e suspense como Blacula (1972), Blackenstein (1973), Abby (1974) e J.D.´s Revenge (1976) entre outros. Ou a aproximação aos westerns como em Boss Nigger (1975, soul music goes West!) com roteiro de Fred Williamson. E o gênero decaiu rapidamente em produções desajeitadas como Black Samurai (1977), com Jim Kelly, Dolemite (1975, a maior quantidade de microfones em cena já vista. Até o boom man comparece), ou vergonhosamente trash como No Way Back (1976) dirigida e estrelada por Fred Williamson. A aventura Three the Hard Way (1974) poderia ter sido a maior aventura feita no gênero com a união de três astros, muita ação e a simpática participação do grupo The Impressions. E o musical Car Wash (1977), um dos últimos êxitos do gênero, foi uma espécie de encerramento definitivo nas produções black. Divertido e despretensioso, Car Wash também teve sucesso de vendas com sua simpática trilha sonora.
Influencia - Musicalmente a presença das trilhas soul foi algo notável como uma das grandes virtudes musicais de seu tempo. Baixistas tiveram seu emprego garantido nas trilhas sonoras. Contrabaixos Fender Precision foram o sonho de consumo de muitos. Musicalmente, o que por muitos anos esteve relegado à base da construção musical popular – a base de baixo e bateria – se tornaria o ingrediente principal nas trilhas do período principalmente em filmes policiais. O tema de abertura de Dirty Harry faria o swing virtuoso das linhas de baixo se tornar item sonoro essencial nos filmes posteriores. E a influência soul se infiltraria em incontáveis produções. Dave Grusin a empregou em The Friends of Eddie Coyle (1973). Roy Budd tem o tema Black is Beautiful na trilha de Stone Killer (1973). O segmento chamado Sound of Philadelphia seria a base musical de Rocky (1976) de Bill Conti. James William Guercio, produtor do grupo Chicago, dirigiu e musicou o cult Electra Glide in Blue (1973) com ótimas passagens soul. E até mesmo a saga Lobo Solitário (!) teve seu momento musical black em Baby Cart in Peril (1972) e White Heaven in Hell (1974). A lista seria extensa, mas basta considerar que cada fraseado de baixo elétrico e cada modulação de guitarra em pedal cry baby que se ouviu nas trilhas do período tiveram procedência das trilhas soul para imaginar a influência da cultura black power na produção dos anos 70.
Mesmo considerando os honrosos pioneiros como o policial Gang Wars (1940) e tentativas posteriores de rever o gênero como Action Jackson (1988), o período 1968-1974 foi historicamente a Golden Age do cinema negro norte americano e o momento mais recompensador em trilhas sonoras. Seguindo a onda saudosista de Austin Powers, a comédia Undercover Brother (2002) reviu as costeletas, plataformas, cabelos black power e lutas kung fu de forma nostálgica e muito divertida. Mas a menção honrosa de encerramento vai naturalmente para a simpatia do ótimo Baadaas (2003) de Mario Van Peebles sobre a produção do antológico Sweet Sweetback Baadaas Song, feito por seu pai, Melvin, em 1970.
