A retomada - Os autores contra-atacam
– Qual a sua trilha sonora preferida?
– Pretty Woman!
– Mas Pretty Woman não é uma trilha sonora. Pretty Woman é uma música do Roy Orbison de 1965 que foi usada no filme da Julia Roberts. É musica pop! Pense bem, escolha uma trilha de filme!
– Tá bom, a música do Ghost então!
– ... o tema de Ghost é outro sucesso pop. Não é original do filme! É a versão dos Righteous Brothers de um tema de filme dos anos 50 e que foi usada em Ghost...
– Que tal Kill Bill? Tem muita coisa legal lá...
Por muitos anos o conceito de “trilha sonora” esteve atrelado ao sucesso que um tema pop utilizado em um filme alcançava no mercado. Situação muito característica dos anos 80, não por acaso período áureo dos videoclips. A situação também caracterizou o momento mais fraco para os apreciadores de trilhas sonoras originais compostas para o cinema. Se a música originária do mercado fonográfico era a identificadora musical de um filme qual era então a função de um compositor de trilhas sonoras originais?
A prática ainda persiste afinal pagar direitos autorais e lançar trilhas como coletâneas pop/rock no mercado é mais rápido e fácil do que contratar compositores e pagar orquestras para a criação de musicas originais. Em épocas passadas mesmo quando havia a necessidade de se incluir temas pop ou rock em alguma sequência, era o próprio compositor encarregado da trilha que compunha os temas. Em Rollercoaster (Terror na Montanha Russa, 1977), por exemplo, o compositor Lalo Schifrin fez a trilha climática (suspense) o tema principal (com cara de disco music) e até a música source (temas ouvidos em alto falantes ou rádios, sem função dramática). Por que não usaram uma composição disco de Giorgio Moroder ou do Cerrone como tema de Rollercoaster? Primeiro porque Lalo Schifrin é um dos talentos mais dotados do meio cinematográfico e, segundo, a pratica em lançar coletâneas de sucessos pop para vender trilhas ainda não era necessária à consolidação do sucesso de um filme junto ao publico.
Mais recentemente podemos lembrar de Snatch (Porcos e Diamantes, 2003), que tem uso muito criativo de música pop/rock durante sua narrativa. Muitas situações são intensificadas (ou ironizadas) com o uso de música rítmica procedente do mercado e o resultado é realmente muito bom, mas seria caso de perguntar: o que um compositor de material original teria feito ao invés de se aproveitar temas prontos do mercado fonográfico? Quantos trabalhos criativos estivemos perdendo nas últimas décadas com a pratica da inclusão de temas pop nas trilhas sonoras?
Apesar da persistência das trilhas como coletâneas de música popular para a identificação de um filme, atualmente é possível identificar uma muito saudável retomada de trilhas sonoras originais com consistência suficiente que justifique sua escuta independentemente do filme a que se destinaram.
A retomada orientada a trabalhos originais (raciocinados especificamente para um filme) é facilmente detectável na carreira de compositores como George Fenton, Patrick Doyle, Elliot Goldenthal ou John Ottman. A inventividade instrumental dos trabalhos de John Ottman em trilhas como a de Os Suspeitos, ou Mark Isham em Nell ou ainda nas fusões jazzístico-orquestrais de Titus e na influencia de rock progressivo de The Tempest, ambas de Elliot Goldenthal, mantiveram ativa a esperança dos fãs de trilhas sonoras em que as músicas de cinema pudessem continuar sendo tão atrativas e criativas quanto foram em décadas passadas. O trabalho de Patrick Doyle é precursor dessa revalorização autoral em músicas para filmes. Seu impressionante trabalho para Hamlet (Hamlet, 1996, Sony Classical), de Kenneth Branagh, é um dos mais notáveis exemplos de trilha sinfônica no cinema contemporâneo. Apesar de submersa na grandeza do filme é um trabalho de rara integridade e que revela ainda mais de sua beleza e profundidade quando ouvida separada da película.
Novas gerações e produções recentes apontam para uma refrescante e promissora retomada criativa nas trilhas de cinema. No referente à personalidade sonora podemos destacar The Countess (2009, Colosseum Records), admirável empenho da atriz Julie Delpy que além de escrever o roteiro, dirigir e protagonizar o drama baseado na vida da Condessa Erzbet Bathory (a “Condessa Dracula”), também compôs sua bela trilha sonora. Conduzida principalmente por cordas, a trilha concentra sua força na expressão camerística das execuções. Sussurrante e delicada é uma música de entrelinhas mais do que de exposição.
Já o filme Micmacs a Tire-Larigot (Micmacs, Um Plano Complicado, 2009, Milan Records), mais uma delirante aventura cômica de Jean Pierre Jeunet, tem música do estreante Raphael Beau. Muito da nostalgia e da comicidade do filme é mérito da música que ora assume a tradição francesa dos acordeões em Diabolique ou valsas em pianola (Train Bleu).
Também de apelo nostálgico é a música de Javier Navarrete para Pan´s Labyrinth (O Labirinto do Fauno, 2006, Milan Records) com sua tocante canção de ninar, Long Long Time Ago. Mas aqui o efeito é transcendente em sua melancolia. E mesmo momentos de deslumbramento como The Labyrinth, carregam no pesar dramático e melancólico. Considerando que a retomada de trabalhos autorais é um fato no cinema contemporâneo, Pan´s Labyrinth é uma das mais notáveis trilhas da atualidade.
Ótimas surpresas também vêm do selo alemão Kronos Records: Recycling Lily (2013) é uma comédia produzida na Suécia à qual que dificilmente teremos acesso, mas sua trilha é de um frescor e simpatia que merece atenção. Em idioma pop, múltiplas citações em faixas com dois minutos na média, a trilha remete à Bacharach e Mancini em suas referências assumidas satiricamente como o lounge havaiano de Happy World, citação a spaguetti western em The Inspectors e surf music em Recycling Surf. Em momentos mais tocantes como Kissed, Emma Falling e Fat and Lonely a música expõe seu lado mais humano e romântico. Resumindo: 40 minutos de uma simpatia musical que parecia ter sido perdida no cinema.
O terror Th3 Pit (2013) tem uma relação interessante com a produção italiana: seu diretor Fillipo De Masi é filho do compositor Francesco De Masi, veterano dos faroestes e filmes policiais dos anos 60 e 70. O filme (disponível no site Vimeo) segue a linha naturalista de equipamento na mão e depoimentos diretos para a câmera (REC, Bruxa de Blair) com filmagem captada em notebooks e câmeras digitais para a sugestão de realismo. A trilha do novato Furio Valitutti é uma ótima surpresa com sua assumida referência gótico/romântica e sua soma de citações musicais à produção italiana.
Dirigido pelo conceituado Dario Argento, Giallo (Giallo, Reféns do Medo, 2010), foi uma tentativa de aproximação do diretor (ou uma volta) à tradição dos filmes de suspense policial. Sua trilha sonora foi um dos trabalhos mais destacados do espanhol Marco Werba. Composta para orquestra a trilha é conduzida por cordas e assume a tradição em seu toque pomposo, quase épico na melodia crescente do tema principal. Equilibrando o explícito e o sutil, o compositor mantém a atenção na difícil encomenda entre o tradicional e o contemporâneo.
Conclusão: podemos dormir sossegados afinal a composição para filmes continua muito bem, obrigado, em seu curso de revalorização musical.
