Retrô sem vergonha - Back to the Past mesmo
Órgãos Farfisa à beira da piscina e Martini à mão. Cílios postiços, cabelo laqueado. O paraíso playboy. Kitsch, brega, retrô! Termos habitualmente assumidos como expletivos pelos eruditos de plantão. Mas em um momento em que a cultura de massa alcança os extremos da nulidade criativa, na hora em que o esgotamento caracteriza o momento, uma revisão de valores acaba acontecendo naturalmente. E os adjetivos estigmatizantes magicamente se convertem em virtudes. Ou será que não?
Atualmente o termo retrô é definidor de uma linha de produção de época mais do que um expletivo de alerta. Além disso, a indústria cultural está com seus estoques cheios e precisa reciclar os conceitos (os nossos conceitos) para vender o encalhe. E o que era desprezível em outras décadas passa a não ser tão ruim como acreditávamos na época. Revisão cultural? Enriquecimento de referência? Manipulação midiática? Pois bem. Aqui vai uma ligeira seleção de cinema retrô.
Eu vi, foi ele! - Quem é o culpado pela inclusão de apelações populares nas trilhas de cinema? Henry Mancini? É possível. Em um momento em que o cinema se orientava para a inclusão de referência popular nas trilhas, vivia-se a explosão da cultura jovem, no final dos anos 50 e início dos 60. O sucesso de Moon River do filme Breakfast at Tyffany (Bonequinha de Luxo, 1961) fez de Henry Mancini um nome confiável para trilhas repletas de temas cativantes. Suas composições, que empregavam um pouco do jazz, habitual a músicos de sua geração, somadas aos imperativos de sua época, como a eletrificação do rock, a música pop e o rythm´n´blues, acabaram por criar um gênero musical alternativo que só foi produzido no cinema. Veja por exemplo o tema principal de The Party (Um Convidado Bem Trapalhão, 1968), de Mancini, que faz clara referência ao apelo corporal, dançante que tanto significou ao período. E se juntarmos esses ingredientes à tradição musical da Broadway teremos a trilha para o dramalhão Valley of the Dolls (O Vale das Bonecas, 1967) de Andre Previn, inquestionável clássico retrô em muitos sentidos.
O americano Burt Bacharach é outro grande talento que fez seu nome nesse período também somando, como Mancini, a tradição romântica à eletrificação que tomava o mercado com a ascensão dos grupos de rock. What´s New Pussycat? (O Que é Que Há Gatinha, 1965) é sua trilha de grande sucesso na ocasião e ingresso definitivo no cinema pop que vigorava. Bacharach ampliaria sua receita musical com After the Fox (1966) e Casino Royale (1967), nos quais a exuberância instrumental não vê limites.
Nesse caminho de manter-se atualizado com códigos populares o cinema assumia referências indissociáveis dessa época como a cultura jovem, as histórias em quadrinhos e a música pop em filmes que assumiam a farsa descompromissada. Em outra época certamente o tema de James Bond não teria se caracterizado pela guitarra elétrica de introdução.
O momento era cada vez mais propício a trilhas de temas curtos e memoráveis, e cada vez menos favorável para arranjos rebuscados e ambiciosas construções sinfônicas. Curiosamente foi um período em que o cinema lançava musica que além de identificar o filme, viria a se tornar sucesso popular, ao contrário do que se fez posteriormente quando os filmes começaram a utilizar o sucesso alheio para suas trilhas musicais. Foi de Cassino Royale que saiu a clássica The Look of Love. Em What´s New Pussycat o destaque foi de Here I Am com Dione Warwick. Foi de um outtake de Blow Up que saiu The Groove is in the Heart do grupo Dee-Lite.
Os filmes de espionagem consequentes da aceitação popular da série James Bond, também foram muito característicos do período e também lançaram muita coisa interessante musicalmente como as trilhas de Kaleidoscope (1967) primeiro trabalho de Stanley Myers. Elmer Bernstein faria sua incursão no gênero com a trilha pop-big band para The Silencers (Agente Secreto Matt Helm, 1966), o primeiro da série Matt Helm. Lalo Schifrin também seria requisitado em Murderer´s Row (Matt Helm Contra o Mundo do Crime, 1967) e The Liquidator (1965) com tema principal cantado por Shirley Bassey (repetindo a atuação de Goldfinger). Bedazzled (O Diabo é Meu Parceiro, 1967) tem uma trilha muito simpática de Dudley Moore, que além de ator e compositor também era exímio pianista.
Diversos filmes adaptados diretamente da cultura das histórias em quadrinhos e literatura pulp surgiram então como Fantomas (Fantomas, 1964) com música de Michel Magne ou Modesty Blaise (Modesty Blaise, 1966) com trilha do saxofonista de jazz John Dankworth. Em Barbarella (Barbarella, 1968) a música de Bob Crewe e Charles Fox assume as canções pop, o rock e o psicodelismo em momentos específicos, quase como em um musical. Em Kriminal (1966) a música de Roberto Pregadio usa de toda a referência popular em efeito máximo: rock, exotismo bossa nova, jazz romântico, guitarras jamesbondianas, órgãos elétricos, bongôs!
Blow Up (1967) com a música entre o jazz e o rock de Herbie Hancock, viria a dar certa respeitabilidade intelectualizada ao momento. Mas foi um caso isolado. Paralelo a ele, a produção na Europa, especialmente no cinema italiano, foi responsável por fantasias irresistíveis como La Décima Vitima (A Décima Vítima, 1965) um filme no qual convergiram todas as referências do período: a ficção futurista, a narrativa de quadrinhos, exploração satírica da violência, ênfase em aspectos gráficos, cenografia pop art e a despretensão geral, mas ainda mantendo a visão crítica (o diretor Elio Petri viria a ser um dos mais importantes do cinema político italiano), e ainda era estrelado por dois astros-fetiche do período: Ursula Andress e Marcelo Mastroianni (de cabelos louros!). A música de Piero Piccioni também é um cruzamento de referências musicais: mistura com extrema felicidade o pop, o jazz, órgãos elétricos (que então eram o símbolo de modernidade na música popular), scat singing (vocalizações sem letra) em um resultado extremamente cativante justamente por sua despretensão e bom humor.
Passar pela Italia sem ouvir Piero Umiliani seria imperdoável. Rei do pop kitsch e autor de Ma-Nah Ma-Nah, Umiliani partiu da tradição do jazz para uma música na qual convergiram todos os modismos, vícios e virtudes do pop de então. Sua trilha para o documentário Sweden Heaven and Hell (na linha apelativa de Mundo Cão) de 1968 é praticamente um catálogo do período com seus órgãos elétricos, psicodelismo e apelos rítmicos do rock. Umiliani, mesmo em trilhas para filmes de suspense não abandonou seu senso de humor musical e uma inventividade instrumental única. Mais Umiliani na parte 2.
E o que dizer de Francis Lai? Genial melodista francês que marcou a época com o icônico da-ba-da-ba-da tema de Um Homme et Une Femme. Provavelmente o tema mais citado, regravado e satirizado da história musical do cinema (junto a Raindrops Keep Falling on My Head de Bacharach). Francis Lai com Um Homme et une Femme (1966), Ennio Morricone com Metti Uma Sera a Cena (69), Luis Bacalov com L´Amica (1969) e Piero Piccioni com Scacco Alla Regina (1969) deixaram para a história imbatíveis monumentos ao pop kitsch cinematográfico. Aliás, Morricone – que vinha de um trabalho já famoso junto a cantores pop antes de ingressar no cinema – tem uma série interessante de comédias como Slalom (1965) Luciano Salce (o mesmo que dirigiu na Vera Cruz) e Escalation (1968) de Roberto Faenza. Confira de Morricone a relação com a música pop em Se Telefonando com Mina Mazinni e Questi Vent´anni Miei com Catherine Spaak ou canções saídas de filmes como Mon Ami de Toujour com Mirelle Mathieu (do filme Le Casse), Argomenti com Astrud Gilbert e Ridevi com Milva (do filme Metti Uma Sera a Cena).
Com o fortalecimento do cinema erótico (dramas, comédias ou simples apelações mesmo) a demanda por trilhas kitsch viria a aumentar na entrada dos anos 70.
Na parte 2, um pouco do kitsch musical dos pervertidos anos 70.
