Cult Movies - parte 1 de outras
Ouvir trilhas sonoras separadamente dos filmes a que se destinaram já é uma atividade cult por si própria. Trilhas sonoras são, automáticamente itens de apreciação cultuadas por segmentos determinados de coleccionadores, ou consumidores, mas ainda assim é bastante curioso buscar por trabalhos alternativos e menos citados. Considerando que o termo cult se refere a preferencias minoritárias, podemos pensar em trilhas que raramente seriam lembradas pela maioria dos ouvintes. Ou que raramente seriam incluídas em antologías e retrospectivas de trilhas sonoras.
O fato é que existem trilhas sonoras que se tornaram tão ou mais interessantes quanto os filmes a que pertenceram como, por exemplo, The Wicker Man (O Homem de Palha, 1971), suspense inglês que não perdeu a graça nem mesmo depois da refilmagem fraquinha de 2003 ou ainda Blacula (Blacula, 1973), filme de vampiro adaptado à época de ouro do cinema black power. O filme é classe B assumido, mas sua trilha ainda vale como curiosidade musical por suas inesperadas combinações instrumentais. Destacam-se naturalmente os breaks de metais e as imprescindíveis linhas de baixo elétrico como nos potentes balanços de Stalkwalk e Firebombs, mas a trilha do arranjador e compositor Gene Page vai ainda além com seus evocativos fraseados de cravo na balada principal (Main Chance). Uma trilha mais interessante do a própria película para a qual foi criada.
Elephant Man (1980) e Last Man Standing (1991) são exemplos raros de ousadias fora do padrão no cinema americano. Em Last Man Standing o talento unplugged de Ry Cooder referencia de forma audaciosa as versões que originaram o divertido filme de Walter Hill (Por Um Punhado de Dólares e Yojimbo) em uma trilha estranhamente vigorosa, misteriosa e evocativa.
John Morris, habitual parceiro das comédias de Mel Brooks, teve em Elephant Man um de seus mais apreciados e reconhecidos trabalhos. Considerando a ausência das trilhas dos filmes de Mel Brooks disponíveis no mercado, Elephant Man pode ser facilmente considerado como o título mais importante do compositor.
Consagrado e mais conhecido atualmente devido às composições para as trilogias Senhor dos Anéis e O Hobbit, o canadense Howard Shore tem honrosos “esqueletos no armário” em sua parceria de longa data com o cinema doentio e fascinante do diretor David Cronenberg desde os anos 70. Naked Lunch (Mistérios e Paixões, 1992), por exemplo, é um riquíssimo híbrido de free jazz e orquestra de câmara. O saxofonista Ornette Coleman é o célebre convidado da trilha e o trabalho inclui composições do saxofonista (Writeman), arranjadas e adaptadas ao híbrido sonoro concebido por Shore. O resultado convulsivo, doentio, embriagado, é outro exemplo sem paralelos na escrita para cinema.
Naturalmente que no cinema europeu a “pescaria” de material cult é bem mais interessante e mais compensadora. Quanto mais se busca, mais se encontra nos meandros e recônditos das produções alternativas europeias. Kristof Komeda é o exemplo que mais imediatamente se destaca. Isso devido à célebre parceria em alguns filmes de Roman Polanski. O toque bizarro do jazz de Komeda em Knife in the Water (A Faca na Água, 1962) e Cul De Sac (Armadilha do Destino, 1966) foi considerável intensificador do clima deslocado das películas. Para Cul de Sac mesmo as peças ouvidas em rádio, que poderiam ser corriqueiros jazz-muzak, soam refrescantes pelas mãos do compositor. E os momentos descritivos como Pushing the Car, Dick´s Death ou o tema principal, destacam-se imediatamente em suas inventivas variações jazzísticas. Diretor e músico fariam ainda os famosos Vampire Killers (A Dança dos Vampiros, 1967) e Rosemary’s Baby (O Bebê de Rosemary, 1968). Polanski iria ainda mais longe na questão de climas musicais com a trilha para seu Macbeth (1971). Encomendada ao grupo alternativo Third Ear Band, é uma trilha sem paralelo seja na produção cinematográfica ou no rock. O grupo inglês, meio folk, meio progressivo e totalmente experimental fazia uma mescla de referência celta/folk com modernidade, instrumentos elétricos e até alguma eletrônica. Para Macbeth, sua música soa como um notável paralelo às imagens.
Outro polonês de nome respeitável entre os alternativos, Jerzy Korzynski teve reconhecimento no cinema por suas parcerias com os diretores Andrzej Wajda e Andrzej Zulawski. Korzynski interessou-se pelas possibilidades expressivas da criação intuitiva em música mais do que por seus conteúdos técnicos ou culturais. Tocou em grupos de rock nos anos 60 e experimentou com o psicodelismo e posteriormente o jazz. Seu trabalho foi mais notado foi no cinema delirante e violento de Andrzej Zulawski. Sua música intensa já se fez notar em Third Part of the Night (1971) primeira parceria entre o compositor e Zulawski. A parceria seguiu com Diabel (1972), On a Silver Globe (1978 - 1988), Possession (Possessão, 1981), Szamanka (1996) e La Fidelité (2000).
Polêmica e esquecida produção espanhola, Quien Puede Matar a um Niño? (1976, refilmada em como Juegos de Niños/Come Out and Play em 2012) teve uma das trilhas mais notáveis do cinema de suspense. Composta pelo argentino Waldo De Los Rios, é um tour de force em composição e performance raramente ouvidos no cinema
Alternativo entre alternativos a animação La Planete Sauvage (Planeta Fantástico, 1973) teve música curiosa de Michel Magne. Somando jazz, psicodelismo e sensualidade, também é um trabalho sem paralelo em seu clima onírico e em suspensão incorpórea.
Curiosa coprodução ítalo-americana, Stridulum (1979) tentou uma somatória de referências entre fantasia, ficção científica, suspense, misticismo, força mental e provavelmente ainda mais coisas. Somou-se ao conjunto, estilização narrativa, inegáveis bons momentos de produção (o ataque final das aves, por exemplo) e um elenco de participações famosas (John Huston, Glenn Ford, Shelley Winters, Franco Nero e até o diretor Sam Peckinpah como um médico) e o resultado foi: uma bizarrice indescritível fadada à revisão cult/trash. Em meio a esse fogo cruzado de possibilidades, tropeços e até algumas virtudes, figura a música de Franco Micalizzi (Trinity) como mais uma das qualidades discutíveis do filme. Situada entre o technopop e o abstrato climático a trilha tem a seu favor referências ao techno-rock e jazz-rock (guitarras com efeito e muito sintetizador). O tema principal tem clara influência disco music com sua estrutura crescente lembrando Assim Falou Zarathustra, e Sadness Theme é uma simpática balada kitsch retrô. Óbvio concluir que, assim como o filme, a somatória de referências foi a orientação musical do compositor. O resultado é tão fora dos padrões e tão duvidosamente estilizado, que só por isso merece uma conferida.
