Outros lugares - Os novos sons da musica eletrônica
Com o desenvolvimento e pesquisas em eletrônica desde o início de século XX, os circuitos geradores de ondas sonoras deram aos compositores possibilidades em criação antes jamais alcançadas pelos instrumentos tradicionais. Um novo local sonoro era descoberto pelas modulações, vibratos e tempos estendidos possíveis em instrumentos como, por exemplo, o theremin ou as Ondas Martenot.
Inicialmente o cinema utilizou eletrônica para o exótico, para o efeito alternativo que não seria conseguido por meio de instrumentos convencionais. O theremin que Miklós Rozsa utilizou em Spellbound (Quando Fala o Coração, 1945) e Lost Weekend (Farrapo Humano (1946) servia à estranheza sonora, ao desequilíbrio em um conjunto musical já reconhecido pelas plateias como familiar: o som da orquestra e a linguagem romântica. Nesse panorama o theremin era um intruso. Jerry Goldsmith faria algo parecido com sua música desbravadora para o drama Freud (1962).
O theremin foi tão usado nas trilhas para filmes de ficção dos anos 50 como em This Island Earth (1955) de Herman Stein ou The Day the Earth Stood Still (O Dia em que a Terra Parou, 1951) de Bernard Herrmann, que estigmatizou o gênero, tornado-se um clichê. Veja a citação satírica que Howard Shore faz em Ed Wood.
Pelo menos uma produção desse período foi notavelmente ousada no uso da eletrônica: Forbidden Planet (O Planeta Proibido, 1956) cuja trilha é composta de efeitos combinados de circuitos geradores independentes. A rigor não é musica, não é executada via instrumentos nem obedece a regras de composição ou escalas, mas como trilha sonora é um dos trabalhos mais ousados e inventivos jamais feitos em sua sucessão climática de bips, silvos e trinados. Para as plateias da época devem ter soado realmente de outro mundo as ondulações eletrônicas desenvolvidas pelo casal de pesquisadores Louis e Bebe Barron.
No pós-guerra, com o desenvolvimento dos microcircuitos e a possibilidade de manipulação de ondas, apareceram os primeiros sintetizadores (como o Moog ou o ANS), geradores que acoplados a um teclado como o de um piano podiam obedecer às regras de composição tradicionais. Mas a eletrônica proporcionava ainda outras possibilidades sonoras em amplitude, duração e timbre e seus desbravadores se entregaram a um terreno novo de exploração sonora e musical. O engenheiro russo Eugene Murzin foi um dos pioneiros no desenvolvimento dos sintetizadores e suas pesquisas, iniciadas nos anos 30, o levaram à construção do sintetizador ANS na década de 50. Murzin o chamou ANS em lembrança ao compositor Alexander Nikolaiev Scriabin, visionário compositor do período final do romantismo russo. O trabalho de Murzin nos leva imediatamente ao cinema, pois Edward Artemiev foi seu aluno e o primeiro compositor a usar a eletrônica (via sintetizador) para a criação de um acompanhamento musical para um filme. A trilha de Solaris (Solaris, 1972) teve sua música executada em um ANS e muito do seu clima se deve às camadas de som alternadas para efeito de difusão emocional e espacial. Com o emprego da eletrônica, Artemiev descobria um “novo lugar” musical. No filme, não ouvimos música na sociedade industrializada (os viadutos e estradas) e mesmo no retiro campestre apenas sons da natureza são ouvidos. A música se inicia somente quando o protagonista deixa a Terra em direção à estação espacial. Diretor e musico repetiriam o bom resultado em The Mirror (O Espelho, 1974) e em Stalker (1979). Em Stalker a música se orienta mais ao familiar acústico, mas muito de sua incursão transcendente se constrói por vias eletrônicas.
Outro trabalho também importante na incorporação da música eletrônica no cinema foi o do grupo alemão Popol Vuh. Liderados pelo tecladista e compositor Florian Fricke, o grupo teve diversos trabalhos feitos para o cinema delirante e aventureiro de Werner Herzog. Aguirre (Aguirre a Cólera dos Deuses, 1972) foi o primeiro. O acompanhamento musical à imponderável e alucinada busca pelo Eldorado é notável desde os primeiros momentos do filme. A idealização mística à qual a música se entrega é justamente o oposto ao caos vivido pela expedição que passa a ser liderada por Don Lope Aguirre (Klaus Kinsky).
Herzog e o grupo Popol Vuh teriam ainda na trilha para Nosferatu (Nosferatu, 1978) uma união tão perfeita no casamento entre imagem e música que pode ser considerada o melhor momento da parceria. A palidez cadavérica da fotografia de Nosferatu tem seu correspondente sonoro nos andamentos macabros de On the Way, o tema recorrente de todo o filme. As trilhas do Popol Vuh receberam bem cuidadas reedições pelo selo SPV Records. Como curiosidade, Florian Fricke aparece em O Enigma de Kaspar Hauser (1971) como um recluso pianista entre os internados para tratamento.
Mais popular do que o Popol Vuh foi o trio alemão Tangerine Dream. A música de Sorcerer (Comboio do Medo, 1977) também é um marco na história das trilhas no cinema. De forma similar a Aguirre e Solaris, Sorcerer é uma aventura em direção ao desconhecido (refilmagem de O Salário do Medo de Henry G. Clouzot) em uma grande produção de William Friedkin em seu filme seguinte a O Exorcista. Concentrando o uso de música na segunda metade da fita, a trilha ganha maior presença no inicio da jornada dos quatro caminhoneiros que levam uma carga de nitroglicerina em dois caminhões reformados. A música impressiona em sua originalidade como trilha de filme e funciona quase que sublinarmente em transmitir o desespero da trajetória, a total entrega a um destino incerto. Mais adiante o grupo faria trabalhos emblemáticos de seu período como os climas technopop de Firestarter (Chamas da Vingança, 1984) e as atmosferas subterrâneas de The Keep (A Fortaleza, 1983).
Ex-integrante do Tangerine Dream em seus primeiros anos de atividade, o tecladista Klaus Schulze teve uma curiosa passagem pelo cinema (erótico) com a trilha de Body Love (1977).
Outros casos bastante interessantes de aproximação entre o pop, a eletrônica e o cinema ocorreram com os pioneiros da disco music Jean Marc Cerrone em Vice Squad (1978) e Giorgio Moroder na famosa trilha de Midnight Express (O Expresso da Meia Noite, 1978) e até Jean Michel Jarre teve passagem pelo cinema com a trilha experimental para o drama policial Les Granjes Brulees (1973), espécie de sementeira de efeitos que Jarre desenvolveria posteriormente em seus álbuns de sucesso.
Com a miniaturização de componentes eletrônicos e teclados cada vez mais versáteis, os anos 80 foram caracterizados pelo excesso de trilhas sintéticas. Infelizmente a grande maioria delas pecou pela repetitividade rítmica ou abstrações climáticas bastante simplórias. Um período negro para as trilhas no cinema. Ainda assim, alguns bravos trabalhos destacaram-se da média. Nesse período merece citação as trilhas de Phenomena (1985) e naturalmente Blade Runner (1982), um dos mais populares trabalhos do compositor Vangelis. Na categoria cult, o compositor John Harrison teve sua parceria de destaque com o diretor George Romero em Creepshow (1980) e Day of Dead (1985) e a música de Walter Carlos para Tron (1981) foi um trabalho pioneiro no que se faz hoje nas trilhas sonoras ao buscar a inserção de recursos musicais diversos. Tron faz uma somatória de possibilidades sintéticas, pop e sinfônicas em um resultado bem interessante e acima das ambições de seu período.
Com as facilidades trazidas pela digitalização a criação musical via eletrônica se instalou irreversivelmente na produção contemporânea. Dessa forma aconteceram interessantes misturas de construção sinfônica junto a efeitos eletrônicos (como havia feito Miklós Rozsa) em trilhas como as de Event Horizon (Enigma do Horizonte, 1997) de Michael Kamen, Plunkett & McLeane (Os Saqueadores, 1999) de Craig Armstrong e Matrix (2000) de Don Davis.
Menção especial pode ser dada à dupla americana Tomandandy (Tom-and-Andy) que já deveria ter tido maior destaque no cinema. Seu trabalho é invariavelmente discreto e eficiente (Killing Zoe, The Hills Have Eyes) mesmo quando em encomendas convencionais (The Apparition). A música de The Mothman Prophecies (A Última Profecia, 2001) é um de seus melhores momentos e seguiu a orientação ambiciosa dessa produção. A edição em CD duplo do selo alemão Colosseum divide-se entre a trilha da dupla Tomandandy e a trilha acrescida da participação do grupo de rock experimental King Black Acid.
Mais uma dupla de destaque na eletrônica: os ingleses do Orbital, que haviam participado de Enigma do Horizonte e tiveram em Pusher (2010) um momento exemplar. Com notável elegância conseguiram intensificar a crescente tensão do filme sem apelar a excessos fáceis. Somando o melhor em construções dançantes/rave a sutilezas dramáticas, Pusher é a constatação de que a música eletrônica no cinema continua em um saudável processo de desenvolvimento.
