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Jazz no cinema - O fim da Golden Age

 

Quando Stella (Kim Hunter) desce as escadas do condomínio para a reconciliação com Kowalski (Marlon Brando) ela aceita as suplicas do parceiro, aceita sua personalidade e até a relação tumultuada que eles levam – até que uma nova briga os separem. Stella desce as escadas em um misto de satisfação e triunfo. Seu andar é gingado e insinuante. É evidente que a reconciliação acontece mais por imperativos instintivos do que por qualquer outra razão. A trilha sonora sabe disso e confirma que a união carnal é determinante na reconciliação. Quando visto pela censura americana da época, essa sequencia (entre outras) de Streetcar Named Desire (Um Bonde Chamado Desejo, 1951) causou incômodo às autoridades e teve que ser reduzida. Montagem e música passaram por alterações. Nessa sequência especifica, o balanço sensual do blues teve que ser trocado por um acompanhamento mais romântico. Com Streetcar Named Desire, o compositor Alex North dividiu a história das trilhas. Encerrou a Golden Age e iniciou uma nova era com a inclusão de linguagem jazzística em uma trilha sonora.

A inserção do idioma jazzístico nas trilhas sonoras foi a primeira grande revolução estética ocorridas nas trilhas americanas. A partir de sua inclusão as possibilidades sonoras de acompanhamento a um filme se ampliaram consideravelmente. Com o jazz as trilhas deixaram de ser um conforto musical de envolvimento, como ocorria quase que invariavelmente com as trilhas sinfônicas. O jazz possibilitou um comentário mais abrasivo e contemporâneo ao cinema. Algo que as trilhas sinfônicas de referência ao romantismo do século XIX dificilmente teriam conseguido.

 

A rigor a trilha de Streetcar Named Desire não é assumidamente jazzística. Ela insere tempos e instrumentações habituais do jazz em uma estrutura clássica já recorrente na composição para filmes. E o jazz já vinha sendo usado modestamente em outras ocasiões como no sinuoso saxofone de A Place in the Sun (Um Lugar ao Sol, 1950) de Franz Waxmax, ou na abertura gershwiniana de Panic in the Streets (Panico nas Ruas, 1950) de Alfred Newman ou ainda em Laura (1944) de David Raksin, que tem muitas passagens de jazz. Mas coube a Alex North assumir a revolução estética necessária ao período. De forma mais efetiva como trilha de significado dramático foi The Man With the Golden Arm (O Homem do Braço de Ouro, 1956) que impulsionou o uso do jazz no cinema de forma mais ostensiva. Nesse trabalho, Elmer Bernstein utilizou o que o gênero tinha de intensidade rítmica e a dinâmica dos metais em um resultado alarmante como nunca se ouvira antes. O desespero de Frank Machine (Frank Sinatra) em sua volta ao vício é acentuado de forma inesquecível pelo toque abrasador da trilha sonora. Bernstein repetiria essa eficiência em Sweet Smell of Success (Embriaguez do Sucesso, 1957). Em 1958 com a música para I Want To Live, o compositor Johnny Mandell também deixaria um marco importante na trajetória da inclusão do jazz como trilha sonora. I Want To Live é eficientíssima devido aos arranjos que usam linguagem jazzística, mas para efeito de significado dramático ainda mais amplo do que a trilha de Bernstein. Algumas composições dessa trilha como Nightmare Sequence e Stakeout não tem paralelo na história e só teriam equivalente no cinema nas trilhas que Quincy Jones faria na década seguinte. Importante também citar Anatomy of a Murder (Anatomia de um Crime, 1958) de Duke Ellington e a trilha de John Lewis (do grupo Modern Jazz Quartet) para o filme Odds Against Tomorrow (Homens em Fúria, 1959) como uma das mais interessantes do momento, por sua exploração de possibilidades expressivas. Apesar de pouco citada, é um das trilhas mais inventivas de seu período.

 

O cinema europeu, mais especificamente o francês, também passou por notável inovação nas trilhas sonoras com o uso de jazz. Ascenseur Pour Lechafaud (Ascensor Para o Cadafalso, 1957) dirigido por Louis Malle, teve trilha famosa feita por Miles Davis. É um verdadeiro ícone sonoro do período em sua associação com as imagens. Jeanne Moreau perambulando de madrugada pelas avenidas ao som cool do trompete é uma imagem clássica no real significado do termo. O jazz de Martial Solal também entrava na nova era em A Bout de Souffle (Acossado, 1960) em suas referências à cultura americana, aos filmes de gangster e, naturalmente, ao jazz. Enquanto Patricia (Jean Seberg) ouve clássicos em seu toca-discos, é o jazz que faz vibrar a vida marginal de Michel (Jean-Paul Belmondo).

 

Na Itália, Piero Umiliani faria uma trilha jazzística para a comédia I Soliti Ignoti (Os Eternos Desconhecidos, 1958) revolucionando a tradição sinfônica e a economia sonora que vinha do neo-realismo. Armando Trovaioli também teve importância nesse momento por sua música de invariável alto astral como em Il Vedovo (O Viúvo, 1959). Depois de anos proibido pela ditadura de Mussollini, o jazz americano significou renovação estética e cultural em sua inclusão na produção italiana.

Um passo importante na história do jazz no cinema seria dado por Lalo Schifrin com a música de Les Felins (1963), suspense de René Clement. Nessa trilha Schifrin explora a dinâmica e a intensidade de ritmos e arranjos para metais de forma inovadora. A intensidade explosiva (e até intrusiva) dessa trilha seria caracterizadora de muita coisa feita posteriormente no cinema. Por experiências assim, diversas variações se mostraram possíveis. As possibilidades expressivas se ampliavam e seriam vistas diversas curiosidades musicais como a trilha sorrateira de John Dankworth para The Servant (O Criado, 1963), a estilização de Krysztof Komeda em Cul de Sac (Armadilha do Destino, 1967) e o “psicodelismo” de Johnny Mandel em Point Blank (À Queima Roupa, 1967).

Em 1965, Quincy Jones faria da trilha de The Pawnbroker (O Homem do Prego) uma fusão de possibilidades entre a linguagem clássica e o jazz. Jones havia estudado em Paris com Nadia Boulanger e The Pawnbroker foi essencial na exposição de suas capacidades. Muito do que ele fez nesse período foi definidor de trilhas para cinema e TV. Sua música para In the Heat of the Night (No Calor da Noite, 1967) teve muita importância e sucesso no período. Michel Legrand acrescentou elegância detalhista na refinada trilha para The Thomas Crown Affair (Crown o Magnífico, 1968) e Lalo Schifrin, com Bullit (1968), inaugurava a nova forma do cinema policial na qual a música e a ação física seriam indissociáveis. Dirty Harry (1971) seria o modelo definitivo nessa trajetória.

Experiências inovadoras posteriores viriam no trabalho do trompetista Don Ellis e Jerry Fielding. Ellis, com as trilhas para French Connection (Operação França, 1971) e French Connection 2 (Operação França 2, 1974) acrescentou procedimentos de vanguarda na escrita e nas atuações instrumentais. Seu trabalho é melhor ouvido em French Connection 2, uma vez que o conceito de perfeição do diretor William Friedkin reduziu bastante a trilha no primeiro filme. Com efeitos de eco de tempos inusitados, Ellis criou um notável acompanhamento expressivo baseado em elementos de jazz. Impossível encontrar similares no cinema e mesmo na eterna busca por renovação e liberdade improvisadora na história do jazz, raras vezes foram ouvidos resultados como os que ele conseguiu no cinema.

Jerry Fielding, também se enquadra nessa categoria de inovadores. Foi um dos mais radicais e menosprezados talentos da composição para filmes. Tem trilhas destacáveis entre as mais originais já feitas para o cinema. Apesar de ser um trabalho de difícil rotulagem, a música de Fielding empregou muito da linguagem do jazz podendo ser destacadas grandes passagens de suporte à ação como em The Killer Elite (Elite de Assassinos, 1975), The Enforcer (Sem Medo da Morte, 1976) e The Gauntlet (Rota Suicida, 1977). Herbie Hancock fez notável uso do jazz-rock que vigorava nos anos 70 com sua música para Death Wish (Desejo de Matar, 1974). Aqui a música ambientava com precisão a “terra de ninguém urbana” na qual a ação se passa.

 

Praticamente encerrando um ciclo de desenvolvimento do jazz no cinema, pode ser destacado o trabalho de Dave Grusin, com sua elegância e tendência à leveza pop na maioria das ocasiões. Com The Friends of Eddie Coyle (Os Amigos de Eddie Coyle, 1973), Grusin ensaiava modelos que desenvolveria mais tarde nos filmes de Sidney Pollack como em The Yakuza (Operação Yakuza, 1975) e Three Days of Condor (Três Dias do Condor, 1975) possivelmente seu melhor momento. A música de Tootsie (1980) com sua brilhante fusão entre jazz e música pop, parece ter encerrado um processo de transformação na história do jazz no cinema que então completava trinta anos. Grusin voltaria a explorar o jazz em grandes trabalhos como The Firm (A Firma, 1990) e Random Hearts (Destinos Cruzados, 1999), mas então a indústria do cinema já tinha outras necessidades musicais.

 

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